Por D. Estêvão
Bettencourt, OSB
4. Origem do Papado
São Pedro |
Lê-se no citado tópico
de jornal: "Até o século V não houve Papa como conhecemos hoje" - A
resposta a esta afirmação dependerá de como entender a expressão "Papa
como conhecemos hoje". Se entendemos que se trata de Papa com uso dos
meios de comunicação modernos (televisão, rádio, internet ...) e viagens
aéreas, está claro que não houve Papa de tal tipo na Antiguidade. Todavia, se
se entende Papa no sentido de chefe visível da Igreja, encontra-se tal figura
já nos escritos do Novo Testamento. Com efeito; Pedro aí aparece como aquele a
quem Jesus confia as chaves do reino dos céus (cf. Mt 16, 17-19) e entrega o
pastoreio das suas ovelhas (cf. Lc 22, 31 s; Jo 21, 15-17). O aspecto bíblico
da questão já foi repetidamente abordado [...]. Sejam acrescentados alguns
traços significativos da história da Igreja.
Não se pode esperar
encontrar nos primeiros séculos um exercício do Papado (ou das faculdades
entregues por Jesus a Pedro e seus sucessores) tão nítido quanto nos séculos
posteriores. As dificuldades de comunicação e transporte explicam que as
expressões da função papal tenham sido menos frequentes do que em épocas mais
tardias. Como quer que seja, podemos tecer a história do exercício dessas
funções nos seguintes termos: A Sé de Roma sempre teve consciência de que lhe
tocava, em relação ao conjunto da Igreja, uma tarefa de solicitude, com o direito
de intervir onde fosse necessário, para salvaguardar a fé e orientar a
disciplina das comunidades. Tratava-se de ajuda, mas também, eventualmente, de
intervenção jurídica, necessária para manter a unidade da Igreja. O fundamento
dessa função eram os textos do Evangelho que privilegiam Pedro, como também o
fato de que Pedro e Paulo haviam consagrado a Sé de Roma com o seu martírio,
conferindo a esta uma autoridade singular.
Eis algumas expressões
do primado do Bispo de Roma:
No século II houve,
entre Ocidentais e Orientais, divergências quanto à data de celebração da
Páscoa. Os cristãos da Ásia Menor queriam seguir o calendário judaico,
celebrando-a na noite de 14 para 15 de Nisã (daí serem chamados
quartordecimanos), independentemente do dia da semana, ao passo que os
Ocidentais queriam manter o domingo como dia da Ressurreição de Jesus
(portanto, o domingo seguinte a 14 de Nisã); o Bispo S. Policarpo de Esmirna
foi a Roma defender a causa dos Orientais junto ao Papa Aniceto em 154; quase
houve cisão da Igreja. S. Ireneu, Bispo de Lião (Gália) interveio, apaziguando
os ânimos. Finalmente o Papa S. Vítor (189-198) exigiu que os fiéis da Ásia
Menor observassem o calendário pascal da Igreja de Roma, pois esta remontava
aos Apóstolos Pedro e Paulo.
Aliás, S. Ireneu (+202
aproximadamente) dizia a respeito de Roma: "Com tal Igreja, por causa da
sua peculiar preeminência, deve estar de acordo toda Igreja, porque nela... foi
conservado o que a partir dos Apóstolos é tradição" (Contra as Heresias 3,
2). Muito significativa é a profissão de fé dos Bispos Máximo, Urbano e outros
do Norte da África que aderiram ao cisma de Novaciano, rigorista, mas
posteriormente resolveram voltar à comunhão da Igreja sob o Papa S. Cornélio em
251: "Sabemos que Cornélio é Bispo da Santíssima Igreja Católica,
escolhido por Deus todo-poderoso e por Cristo Nosso Senhor. Confessamos o nosso
erro... Todavia nosso coração sempre esteve na Igreja; não ignoramos que há um
só Deus e Senhor todo-poderoso, também sabemos que Cristo é o Senhor...; há um
só Espírito Santo; por isto deve haver um só Bispo à frente da Igreja
Católica" (Denzinger-Schõnmetzer, Enchiridion 108 [44]).
O Papa Estevão I
(254-257) foi o primeiro a recorrer a Mt 16, 16-19, ao afirmar contra os
teólogos do Norte da África, que não se deve repetir o Batismo ministrado por
hereges, pois não são os homens que batizam, mas é Cristo que batiza. A partir
do século IV, o recurso a Mt 16, 16-19 se torna frequente. No século V, o Papa
Inocêncio I (401-417) interveio na controvérsia movida por Pelágio a respeito
da graça; num de seus sermões S. Agostinho respondeu ao fato, dizendo:
"Agora que vieram disposições da Sé Apostólica, o litígio está terminado
(causa finita est)" (serm. 130, 107).
No Concílio de
Calcedônia (451), lida a carta do Papa Leão I, a assembléia exclamou:
"Esta é a fé dos Pais, esta é a fé dos Apóstolos. Pedro falou através de
Leão".
O Papa Gelásio I
declarou entre 493 e 495 que a Sé de Pedro (romana) tinha o direito de
julgamento sobre todas as outras sedes episcopais, ao passo que ela mesma não
está sujeita a algum julgamento humano. Em 501, o Synodus Palmaris de Roma
reafirmou este princípio, que entrou no Código de Direito Canônico: "Prima
sedes a nemine iudicatur, - A sé primacial não pode ser julgada por instância alguma"
(cânon 1629). Em suma, quanto mais o estudioso avança no decurso da história da
Igreja, mais nitidamente percebe a configuração do primado de Pedro, ocasionada
pelas diversas situações que o povo de Deus foi atravessando.
No tocante ao termo
"Papa" deve-se dizer que vem do grego "pappas" =
"pai". Nos primeiros séculos era título atribuído aos Bispos como
expressão de afetuosa veneração, veneração que se depreende dos adjetivos
"meu..., nosso..." que acompanham o título. A mesma designação podia
ser ocasionalmente atribuída também aos simples presbíteros (pais), como
acontecia no Egito do século IV. No Oriente ainda hoje o sacerdote é chamado
"papas". No Egito o "papas" por excelência é o Patriarca de
Alexandria.
O título de papa é dado
ao Bispo de Roma já por Tertuliano (+220 aproximadamente) no seu livro De
pudicitia XIII 7, onde se lê: "Benedictus papa". É encontrado também
numa inscrição do diácono Severo (296-304) achada nas catacumbas de São
Calixto, em que se lê: "iussu p(a)p(ae) sul Marcellini" (="por
ordem do Papa ou pai Marcelino"). No fim do século IV a palavra Papa
aplicada ao Bispo de Roma começa a exprimir mais do que afetuosa veneração;
tende a tornar-se um título específico. Tenha-se em vista a interpelação
colocada por S. Ambrósio (+397) numa de suas cartas: "Domino dilectissimo
fratri Syriaci papae" (="Ao senhor diletíssimo irmão Siríaco
Papa") (epístola 42). O Sínodo de Toledo (Espanha) em 400 chama Papa (sem
mais) o Bispo de Roma. São Vicente de Lerins (falecido antes de 450) cita vários
Bispos, mas somente aos Bispos Celestino I e Sixto III atribui o título de
Papa.
No século VI o título tornou-se, com raras
exceções, privativo dos Bispos de Roma.