Estando a questão em
aberto, pois o dogma ainda está nos possíveis de Deus, escolha o leitor o que a
piedade mais lhe fala ao coração…
Anderson Carlos de Oliveira,
3º Ano Teologia
Amor de mãe
Nada na ordem da criação reflete mais o amor de Nossa
Senhora por cada um de nós, quanto o amor de uma mãe por um filho.
Para esta, não existe barreiras que a impeça de estar junto
a seu filho, para cumulá-lo de carinho, desvelo, e impedir que lhe aconteça
algum mal. Nem mesmo a doença os pode separar. Há casos de mães que chegam a
ficar trinta e seis horas ao lado seus filhos, sem sequer sair para comer ou
dormir, abandonando apenas o leito quando cessa o perigo da doença. Isso sem
falar de terapias, que usam sua voz para trazer alguém em estado de coma à
lucidez dos sentidos… tal é o poder terapêutico do amor de uma mãe por um
filho.
Amor de Nossa Senhora
por Nosso Senhor
Ausência de Nosso
Senhor na terra
Certo é que, no momento em que todos abandonaram o Divino
Redentor, Nossa Senhora não abandonou, e até no momento trágico e lancinante da
Crucifixão e morte, Ela esteve junto a seu Filho.
Após a Ressurreição e a Ascensão, enquanto Nossa Senhora,
custodiada por São João Evangelista, iluminava os homens com sua augusta
presença, é de se pensar quanto não terá Ela sofrido com a ausência física de
Nosso Senhor Jesus Cristo na terra…
Nossa Senhora morreu
ou não?
Nessa perspectiva, podemos conjecturar se não seria lógico
que, após dolorosa separação entre Mãe e Filho, Ela quisesse se unir a Ele na
eternidade, passando desta vida à outra, pelo mesmo caminho por Ele traçado: a
morte.
Entretanto, não há nos Evangelhos relatos a este respeito,
seja do lugar, das circunstâncias, etc. O que se supõe, vem-nos através da
Tradição. Inclusive, a crença antiga atribui dois locais distintos para
designar o lugar em que se deu tal morte. Não se pode ter uma certeza sobre
esta questão, pois a Igreja ainda não se pronunciou sobre ela, de maneira que a
dúvida continua assaltando o espírito dos fiéis: afinal, Nossa Senhora morreu
ou não?
Argumentos a favor e
contra
Muitos são os que discutem sobre a questão, alguns a favor
da morte de Maria, outros contra. Não faltam argumentos, na sua maioria de peso
de ambas as partes. Eis uma visão, à la vole d’oiseau, do problema, e de
alguns argumentos sustentados pelos teólogos:
Os teólogos que sustentam a tese a favor da morte de Maria
têm, em seu arsenal de argumentos, o apoio da maioria dos relatos da Tradição,
da festa litúrgica do Trânsito de Maria, dos Santos Padres, e também de
teólogos luminares na Igreja, como por exemplo, São Tomás de Aquino, que
afirmava ser a carne da Virgem concebida em pecado original e, por isto,
contraiu tais deficiências (S. Th. III, q. 14,a. 3 ad 1)[2], entre elas, a
morte.
O testemunho de Santo Efrém († 373), o primeiro a falar
desta questão, é também relevante: “Virgem, ela o deu à luz, e fica incólume em
sua virgindade; (…) Ela é virgem, e assim morre, sem que sejam violados os
selos de sua virgindade”.[3]
Outro argumento usado na contenda é o de Santo Agostinho
(†430) comentando a passagem do Evangelho de São João (19, 27)[4]: “Confia ele
sua Mãe ao discípulo, pois havia de morrer antes de sua Mãe Aquele que havia de
ressuscitar antes que sua Mãe morresse”.[5]
Acrescentando “mais lenha à fogueira”, os teólogos apelam à
razão teológica em relação à morte de Maria: “morreu por exigências de sua
maternidade divino-co-redentora; para exemplo e consolo nosso; [e também] Maria
superior a Cristo no que diz respeito à morte corporal?” [6]
Não faltariam testemunhos a favor da morte de Maria, como o
da Liturgia – cuja origem remete ao séc. VII –, da Teologia Medieval, etc. Mas,
basta este elenco – que de si, já é bastante forte – para se ter uma noção de
qual a sua postura.
A outra corrente teológica baseia-se, entre outros, nos
argumentos de conveniência, por exemplo, este: como em conseqüência da
Maternidade Divina está a exemplaridade de Maria, ou seja, como “Maria é, em
todos os domínios, a realização primeira e exemplar dos dons que são espalhados
na Igreja, o tipo da Igreja” [7],todos os privilégios que os Anjos e
santos tiveram ou terão, e que convêm a Nossa Senhora, Ela os teve, em grau
insondavelmente maior que todos eles. Ora, consta queos últimos fiéis no fim
dos tempos não experimentarão a morte[8], e passarão desta vida à outra sem
morrer, devido às grandes tribulações por eles sofridas, portanto, é
arquitetônico que Nossa Senhora também tenha esse privilégio, pois nenhum
sofrimento se compara ao d’Ela aos pés da Cruz.[9]
Outro ponto: se a mortalidade é uma carência de um dom
concedido anteriormente a Adão, carência esta que é efeito de um castigo pelo
pecado cometido, como pode Nossa Senhora estar desprovida deste dom?[10]
Outro argumento teológico utilizado na discussão diz: Maria
tinha o direito de não morrer em virtude de sua Imaculada Conceição, que a
preservou da culpa e da pena anexa a esta, que é a morte.[11]
Explicando melhor, com a sentença dada por Deus, “morrerás”
(Gn 2, 17), o homem foi despojado do dom gratuito da imortalidade, ficando
reduzido ao estado de pura natureza. Neste, o processo normal tende
inevitavelmente à morte e nela se desfecha; entretanto, o que seria natural em
outra ocasião, agora é penal, por causa do pecado. A questão está em provar o
porquê se encontrava Maria na condição de mortalidade quando esta condição é
exclusivamente um castigo para os homens devido ao pecado.
Os próximos argumentos do teólogo Pe. Jugie são deduções da
Tradição: “Até fins do século VI se desconhecia em Jerusalém a existência de um
sepulcro da Virgem, ainda que a partir de fins do século V se mostrou em
Getsêmani uma casa de Maria, de onde se diz que Ela foi levada ao Céu”.[12]
“No princípio, em um círculo mais restrito de fiéis, houve
uma verdadeira tradição oral [que se remonta a São João] sobre o modo com que
Maria passou desta terra ao céu. Mas é necessário notar que essa tradição,
conhecida por muito poucos, se obscureceu muito rápido, ainda mesmo na
Palestina, a tal ponto que o palestino São Epifânio não tem dela a menor
lembrança”.[13]
A Igreja não definiu a questão
Para ver o quanto a questão é complicada, basta dizer que até os
escritores mais antigos abordavam o assunto com delicadeza, não ousando se
pronunciar sobre o tema, por risco de serem alvo de censura. É o que expressa
Santo Epifânio (315-403): “A Sagrada Escritura não diz se Maria morreu, se foi
sepultada ou se não foi sepultada… Conservou absoluto silêncio por causa da
grandeza do prodígio, a fim de não deixar assombrados os espíritos dos homens.
Quanto a mim, não ouso falar disso. Conservo a questão em minha mente e me
calo”. [14] E acrescenta mais adiante: “(…) Com efeito, a
Sagrada Escritura se colocou acima dos espíritos dos homens e deixou este
ponto, na incerteza por reverência a essa Virgem incomparável, a fim de evitar
conjetura baixa e carnal a respeito de Maria. Morreu? Não o sabemos”.[15]
Subiu aos Céus em corpo e alma
Poder-se-ia trazer a lume inúmeros argumentos de as ambas
correntes, e mostrar como o assunto é por demais polêmico e difícil de ser
resolvido. Todos, entretanto, são unânimes em afirmar que Maria Santíssima foi
Assunta aos Céus em corpo e alma, que se deu de fato a glorificação de ambos.
Porém, a Santa Madre Igreja, não querendo entrar em pormenores anteriores à
inegável Assunção da Santíssima Virgem, ou seja, de como este fato se deu, se
através da morte e ressurreição, ou se foi transladado imediatamente desta vida
à celeste, por um leve sono, assumindo ainda em vida um corpo glorioso, se
expressou da seguinte maneira por Pio XII na Bula Muficentissimus Deus,
n°18: “(…) para credenciar a glória dessa mesma augusta Mãe e para o gáudio e a
alegria de toda a Igreja (…) pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma
revelado por Deus que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado
o curso da vida terrestre foi Assunta em corpo e alma à Glória Celestial.” [16]
Assim, prescindindo intencionalmente, quer do fato da
“morte”, quer da “não morte”, e apenas se limitando ao fato da Assunção da
Santíssima Virgem à glória celeste, a Igreja, acolhendo todos os anseios de
séculos de piedade cristã, se mantém numa posição equilibrada, neutra e
prudente, dando a verdadeira impostação de espírito para a questão de uma forma
sábia encantadora: Dormitio Beatae Mariae Virginis – o sono da
Santíssima Virgem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. vol. 8.
Loyola: São Paulo, 2002.
BERRIZBEITIA, Francisco. Aula de Mariologia ministrada para
a turma Santo Alberto Magno, no Instituto Teológico Tomás de Aquino, em
06/05/2010.
BETTENCOURT, Estevão Tavares de, O. S. B. Curso de
Mariologia. Escola “Mater Ecclesiae”. Rio de Janeiro, 1997.
BOVER, José M., S.J; ALDAMA, José Antonio de, S.J; SOLA,
Francisco de P., S.J. LA ASUNCION DE MARIA: Estudio teológico
histórico sobre la Asunción corporal de la Virgen a los cielos. 2 ed. B.A.C.:
Madrid, 1961.
CLÁ DIAS, Mons. João S. Pequeno Ofício da Imaculada
Conceição Comentado.Artpress: São Paulo, 1997.
JUGIE, P. Martín. La mort et l’Assomption de La Sainte
Vierge: Étude historicodoctrinale. Città del Vaticano, 1944.
LAURENTIN, René. A Questão Marial. Traduzido por P.
Manuel Alves da Silva, S. J. Edições Paulistas: Lisboa, 1967.
NICOLAS, Auguste. La Virgen Maria y el plan Divino. t.
II.
ROYO MARIN, Fr. Antonio, O. P. La Virgen Maria:
teología y espiritualidad marianas. B.A.C: Madrid, 1961.
[1] (Cf. NICOLAS, p. 65; apud CLÁ DIAS, 1997, p. 323)
[2](Cf. AQUINO, 2002, p. 256) “Caro Virginis concepta fuit
in originali peccato; et ideo hos defectus contraxit.”– Cabe ponderar que São
Tomás não podia saber da promulgação do dogma da Imaculada Conceição
(8/12/1856), do contrário, se retrataria. Ademais, não tinha noção do argumento
da “Redenção Preventiva”, elaborada posteriormente por Duns Scoto (†1308). A
perplexidade do Aquinate dizia respeito à impossibilidade de concordância entre
esse singular privilégio de Maria e o dogma da Redenção universal de Cristo.
[3] (Cf.
Hino 15,2. apud BETTENCOURT, 1997, p. 79)
[4] (Cf. Vulg. “deinde dicit discipulo ecce mater tua
et ex illa hora accepit eam discipulus in sua”.)
[5] (Cf.
In Iohannem tr. 8, 9; apud BETTENCOURT, 1997, p. 80)
[6] (Cf. CLÁ DIAS, 1997, p. 422)
[7] (LAURENTIN, 1967, p. 85)
[8] (Cf. BOVER; ALDAMA; SOLA, 1961 p. 75) ”No morirán
los fieles que fueren hallados vivos en el segundo advenimiento de Cristo”.
(Tradução nossa)
[9] (Cf. BERRIZBEITIA, Francisco; Aula de Mariologia
ministrada para a turma Santo Alberto Magno, no Instituto Teológico Tomás de
Aquino, em 06/05/2010)
[10] (Cf. BOVER; ALDAMA; SOLA, 1961 p. 76)
[11] (Cf. ROYO MARIN, 1968, p. 207; apud CLÁ DIAS,
1997, p. 422)
[12] (JUGIE, 1944, p. 508; apud BOVER; ALDAMA; SOLA,
1961 p. 17) “Hasta fines del siglo VI se desconoce en Jerusalén la existencia
de un sepulcro de la Virgen, aunque a partir de fines del siglo V se muestra en
Getsemaní una casa de María, desde donde se dice Ella fué llevada al
cielo”.(Tradução nossa)
[13] (IBIDEM, p. 587; apud op. cit.) “Al principio, en
un círculo más restringido de fieles, hubo una verdadera tradición oral [que se
remonta a San Juan] sobre el modo con que María pasó de la tierra al cielo.
Pero hay que hacer constar que esta tradición, conocida de muy pocos, se
oscureció muy pronto, aun em Palestina, hasta el punto de que el palestinense
San Epifanio no tiene de ella el menor recuerdo”. (Tradução nossa)
[14] (Cf.
Panario, Haer. 78, nm. 10s. apud BETTENCOURT, 1997, p. 79)
[15] (Cf. IDEM)
[16] (Cf. apud CLÁ DIAS, 1997, p. 425,
negrito nos