Por Rafael de Mesquita Diehl
Quase todos nós ao ouvirmos falar da
primeira Missa celebrada em território brasileiro imediatamente trazemos à
nossa mente a imagem imortalizada pela tela de Victor Meirelles de 1860 e
atualmente exposta no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. A pintura, de
estilo romântico, representa os indígenas e portugueses assistindo a uma Missa
celebrada pelo Frei Henrique de Coimbra, acolitado por um outro frade, diante
de uma grande cruz de madeira armada junto do altar da celebração. Por ocasião
dos 512 anos da celebração da primeira missa no Brasil, comemorado hoje, dia 26
de abril de 2012, essa imagem está sendo compartilhada nas redes sociais para
relembrar o evento. Contudo, a tela de Meirelles retrata na verdade, a segunda
Missa no Brasil, celebrada dia 1º de maio. Como assim?!
"Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir
missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se
arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um
pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer
missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com
aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a
qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e
devoção.
Ali estava com o Capitão
a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da
parte do Evangelho.
Acabada a missa,
desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa
areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no
fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob
cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta
gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava
folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando
nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno
ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em
almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como as que
eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco,
ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam
tomar pé.
Acabada a pregação
encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira
alta."(Carta de Pero Vaz de Caminha
a El-Rey Dom Manuel I de Portugal, Porto Seguro, 1º de maio de 1500. Os
grifos são meus)
O motivo desta celebração ter sido mais
afastada foi provavelmente de que o capitão não se sentia seguro de mandar
celebrar a liturgia no continente por ainda não ter contatos suficientes com os
nativos da terra.
Foi só na sexta-feira, 1º de maio, que o
Frei Henrique de Coimbra celebrou Missa solene diante da cruz de madeira
plantada na terra da praia de Porto Seguro, a qual assistiu toda a esquadra e
uma grande quantidade de indígenas que se juntaram para observarem a cerimônia.
"E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã,
saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o
sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E
ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E
enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo
onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos
trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta
ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo
dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde
havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali
nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro
lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei
Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de
joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos
todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as
mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como
nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram
assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados
que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco
até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e
sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser
grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e
ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou
ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles
que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles,
falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para
o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o
padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar,
em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia,
tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso,
que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram
sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo,
chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a
pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que
lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um
sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz;
e ali lançava a sua a todos -- um a um -- ao pescoço, atada em um fio,
fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e
lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado --
era já bem uma hora depois do meio dia -- viemos às naus a comer, onde o
Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o
altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe
uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a mim e
a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã,
do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós
mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem
creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que
todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se
alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então
terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles
ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes que
hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à
qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia,
ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim,
Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior -- com
respeito ao pudor. Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se
convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos
perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer." (Carta de Pero Vaz de Caminha)
Fica assim, desfeito o engano. A primeira
missa no Brasil foi celebrada em um Domingo, dia 26 de abril, na ilhota da
Coroa Vermelha. O que Victor Meirelles representou em seu quadro de 1860 é a
primeira Missa celebrada em terras continentais do Brasil, na sexta-feira, 1º
de maio de 1500. Nada disso, contudo, anula a memória deste dia, em que
comemoramos a primeira Missa celebrada em terras brasileiras, onde por singular
graça e sagrado privilégio, nossa Pátria nasceu sendo oferecida a Deus junto
com o Santo Sacrifício de Seu Filho e Senhor Nosso, Jesus Cristo.
Brasil: Terra de Santa Cruz!
SAIBA MAIS:
KUHNEN, Alceu. As Origens da Igreja no
Brasil: 1500 a 1552.Bauru, EDUSC, 2005.